segunda-feira, 27 de junho de 2016

QUERIDA LISA (5a. Carta)





Ando muito consternado com a notícia que recebi do médico americano. Só contei a você. Meu mundo caiu, como aquela música da Maísa...

Não sei o que fazer, como contar à minha avó Clara. Ela praticamente só tem a mim; pois minha mãe só pensa  em levar a vida fútil de sempre e meu pai não liga há meses para nós. Você sabe, eles são separados há anos. Minhas tias,  cada um com sua vida e filhos. Vó Clara só tem a mim, aliás sempre só teve.

Outro dia, ela se sentou ao meu lado, me olhou direto me perguntou "na lata". Só que neste na lata, tinha tanta ternura e desejo de ajudar, que de repente me vi chorando feito um bebezão.

Conseguiu disfarçar e disse que tudo ia ficar bem. Saí e voltei só a noite, depois de vagar por aí.

Estes dias tenho tentando aparentar mais serenidade, porque sinto que ela me observa me escrutinando. Quando não está me observando, sou eu que a observo e fico horas vendo o seu perfil severo, de mulher decidida. Ela anda por toda a casa, mexe nas suas coisas, dá ordens à nossa velha ajudante Flora, cuida das plantas, vai à padaria, toca seu piano.
Quando estava nos Estados Unidos, ela me escrevia direto e sempre tinha tantos assuntos; não parecia que vivia aqui apenas com Flora. Ela ainda tem aquele mesmo jeito de outrora, ou seja, te olha firme e direto e não escolhe as palavras. Vai direto. Mas não sei porque no meu caso, agora anda cheia de dedos e apenas vejo os seus olhos pequeninos que me olham com sua ternura de muitos anos.

Lisa, o que vou fazer? Como contar a ela que tenho os meses contados? Como dizer a ela, que no próximo outono talvez eu não esteja mais aqui? Sabe Lisa,  eu não construí nada que tenha orgulho nesta vida, mas tenho orgulho do amor dela que consegui manter.

Agora lá fora ela rega suas plantas. Está abaixada arrancando ervas daninhas. Seus dedos são agéis e decididos. Que sorte seria se eu pudesse pedir a ela que arrancasse com estes mesmos dedos  decididos o câncer que agora sei me devora...

Pedro

quarta-feira, 22 de junho de 2016

QUERIDA SARA, (4a. Carta)

Que bom que retornou minha carta e me contou o segredo. Então era isto? Você tem visto o Olívio? E quando ele era jovem? Não se preocupe não Sara! Lá do outro lado da vida, o Olívio está conectado contigo e por isto você tem a impressão que o tem visto.
O fato dele ainda ser jovem é porque como disse, você tem saudades do passado.


Eu também tenho. Muitas. Quando a velhice chega, só passado que nos consola. Triste de quem não tem boas lembranças... Elas são como filhos queridos. Diferente que não vão embora como os filhos. Elas permanecem.

São como tesouros, pérolas guardadas em uma caixa antiga. Há momentos em que as retiramos desta caixa e estendemos nas nossas vistas, como em uma cama lindamente coberta. Acariciamos estas lembranças, cheiramos, degustamos e as voltamos para a caixa. Algumas vezes com alegria, mas muitas vezes com tristezas. É normal. Faz parte, como dizem hoje em dia.

Pode continuar a contar estes segredos para mim. Não acho que esteja louca. Pena que não possa ver o meu querido Pedro como você tem visto o Olívio. Eu e Pedro vivemos uma época maravilhosa. Mas não fomos tão felizes como você e o Olívio. Então acho que o Pedro não aparece por aqui não, viu...

Sara, falando em Pedros. Tive uma conversa franca com o Pedro neto. Ele se sentou um dia sobre as escadas do fundo e ficou olhando o vazio durante muito tempo. Eu cheguei de mansinho, sentei ao lado dele e fiquei em silêncio. Eu comunhei com aquela quietude que ele estava. 

Devagar, o Pedro foi virando a cabeça e seus olhos se encontraram com os meus. No fundo deles, eu vi lágrimas. Meu neto Pedro também tem segredos. Só que não quer partilhá-los comigo. Não o sei o  por quê... Mas como disse, eu tive a conversa franca com ele. 
Naquele momento que ele me olhou direto com os olhos cheios de lágrimas, eu disse:

"Escuta Pedro, algo não vai bem contigo. Foi desde que voltou dos Estados Unidos. Não o vejo sorrir, só macambúzio pelos cantos e agora vejo lágrimas em seus olhos. Tem problema chorar não Pedro! Chorar é a dádiva que Deus nos deixou neste mundo cão. Mas eu sou sua avó. Eu o amo acima de qualquer coisa. Então Pedro, me conta. O que está acontecendo."

Olha Sara, ele não disse nada! Mas apertava minhas mãos e as lágrimas desciam. Você sabe que o Pedro já tem quase 40 anos. Para um homem chorar, mesmo com as modernidades de hoje, é difícil.
Deixei-o chorar e fiquei esperando com o coração pequeninho, feito um passarinho. Chorei não, Sara. Segurei. Porque se vivi tantos anos nesta vida, alguma coisa tenho que ter aprendido né?

Depois, ele pegou minha testa, me deu um beijo e disse: 'Vó, tá tudo certo. As coisas se arranjam. Me “dá só um tempo”. E saiu.
Depois destes dias, ele tem tentado aparentar mais confiança. Você sabe, nesta casa ficamos somente eu e ele, porque as meninas se "picaram", inclusive a mãe dele.

Sara o que posso te dizer? Eu rezo. Reza aí também. E para o Olívio. Um dia ele pára de te visitar.

Mande notícias e desculpe se estou meio amarga. Um beijo e um abraço de muitas horas,


Clara.
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segunda-feira, 20 de junho de 2016

QUERIDA CLARA, (3a. Carta - O SEGREDO)

Espero que esteja bem e animada como aparenta na sua carta.
Quando o carteiro passou, corri para o quarto para poder ler e receber este alento de amizade que você sempre transmite. 


Clara, fiquei pensando no que disse sobre o comportamento do Pedro. Olha, com certeza são as preocupações da vida adulta. Lembro-me dele quando criança. Era um garoto divertido e muito carinhoso. 

Também me lembro dele correndo entre os nossos quintais e de entrar na minha casa como se fosse sua. Sorrir encostado na porta, enquanto eu terminava meus bolinhos de chuva. Era como um neto querido.  Viver requer paciência. Paciência com as adversidades.  E elas são muitas.  Não desista dele. Devagar vai descobrir o que se passa.
Não fique tão curiosa com o segredo... mas eu te agucei , então vou contar. 
Sentada na minha escrivaninha outro dia, enquanto lia os jornais, de repente tive a impressão nítida que alguém me observava de fora. Foi aí que levantei
os olhos e vi o Olívio caminhando pelo jardim. Tenho certeza Clara! Absoluta! Só que ele não estava velho como quando morreu. Era jovem como quando nos casamos. Ele caminhava devagar com as mãos entrelaçadas nas costas e sorria para mim.
Fiquei parada pensando que estava louca. Meu coração batia descompassado e eu não conseguia mover. Fechei os olhos, pensando que era uma alucinação, que quando abrisse, ele não estaria lá mais. Mas assim que abri os olhos, ele continuava lá Clara! Agora havia se encostado à paineira velha  e me olhava com olhos divertidos de quando me pregava uma daquelas peças. 
Ficamos assim em silêncio nos olhando. Eu uma velha caquética e ele, o jovem engenheiro que conheci na juventude e que me arrebatou o coração.
Resolvi sair para encontrá-lo então, já que continuava ali. Assim, que coloquei os jornais na escrivaninha e me levantei, um segundo, ele havia desaparecido.
Clara, será que estou ficando louca? Será que a demência, o tal de Alzheimer, ou o” diabo a quatro” que a modernidade inventou?
Não posso contar a ninguém, pois ultimamente todos andam cheios de dedos comigo e ao menor esquecimento, me tratam como uma louça prestes a quebrar! Ou como uma louca , né?!
Passou se um mês que eu o vi ali encostado na paineira.
Próximo ao aniversário dele, de repente eu o vi do outro lado da calçada. Ele trajava o mesmo terno do nosso casamento e tinha a mesma flor na lapela.
Agora estou todos os dias a olhar pela janela e tenho até acordado a noite para ver se o vejo novamente. Nunca mais apareceu. Tem mais de 30 dias. 
Estou louca Clara? Mande-me sua opinião.

Um beijo e um abraço de horas,

Sara.
PS.  Neste momento, continuo aqui na escrivaninha esperando...
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sexta-feira, 17 de junho de 2016

QUERIDA SARA - 2a. Carta - resposta


Que felicidade receber a sua carta! Que bom que ainda podemos manter esta conexão! Você me deixou curiosa com o segredo!!! Que segredo é este? Por que não contou? Agora estou curiosíssima!
Mas, vou aguardar né?

Olha eu vou indo. Sim, depois daquele susto que levei no ano passado, continuo tomando meu remédio do coração e tentando seguir as orientações do médico. Na medida do possível, estou bem.

Meu neto Pedro voltou mês passado dos Estados Unidos. Está diferente!
Você não iria acreditar como ele mudou. Tanto física como mentalmente.
Está mais calado. Nem lembra aquele garoto de olhos brilhantes que costumava entrar correndo pela casa. Nem o jovem sorridente que um dia partiu para estudar fora. 
Como você disse, a vida muda. Muda as pessoas. Devagar estou tentando restabelecer a intimidade de antes com Pedro.

Quando converso com ele, tocando suas mãos na mesa do café, ele ergue os olhos castanhos e no fundo deles eu vejo a incerteza, uma dor fugidia mesclada com a ternura paternalista de neto agora já maduro.

Mas deixa para lá. Viver é perigoso como dizia aquele escritor Fernando Sabino, acho...
Sara, obrigada pelas palavras sobre a nossa amizade. Isto enternece o meu coração, é um presente para os meus dias agora mais vazios...  O sentimento é recíproco.
Mas Sara, dê um chute nesta tristeza que vem batendo na sua porta. 
Saia desta, como dizia o Pedro quando era jovem, lembra?
Eu sugiro você mergulhar sim nas lembranças boas e de lá retirar fôlego para o caminho que se estende à sua frente.
Você já ouviu que todos nós temos um anjo protetor?  Pois é, o seu anjo está em algum canto do universo. Ele te espera e te guarda à distância.  Escuta lá.

Um beijo e um abraço de horas também!
Clara
PS E o segredo?!

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quinta-feira, 16 de junho de 2016

QUERIDA CLARA, (1a. Carta)


Aqui  todos vão bem. Apenas eu que de uns tempos para cá venho sentindo repentes de tristeza. Não sei o que é. Vem um aperto. Um nó e passa. Fica uma sensação ribombando como um eco de angústia. Tenho medo de ser a tal da depressão. Sai prá lá...!

E você? Como andam as coisas e a vida em geral? Você ainda está tomando aquele seu remédio para o coração? Está tudo bem? Espero que sim.
É,  na nossa idade os problemas de saúde só aumentam. Parece que estamos descendo uma ladeira abaixo, só para baixo.
Além dos problemas de saúde, começamos a ver bem os que nos cercam. E às vezes o que vemos, não é nada bom.

Semana passada foi visitar o Olívio. Quero dizer, fui ao túmulo dele lá no cemitério das Oliveiras onde ele repousa para sempre. Quanta saudade! As flores que  deixei no dia do seu aniversário, estavam ressequidas, o vaso tombado. Tudo morto. Tudo solitário.

Muitas vezes Clara, eu me lembro de quando éramos jovens, eu o Olívio, você e o Pedro. Lembra-se?

Você era tão elegante com suas echarpes de seda, seu porte altivo.
Não tinha quem não te olhasse quando entrava em um lugar.

Durante os anos que fomos vizinhos, eu fui uma das pessoas mais felizes, pois além da vida que tinha com o Olívio, eu pude compartilhá-la com você, esta pessoa singular que é você Clara e que são poucas.
 Éramos como uma família nós quatro, pois sozinhos em uma cidade nova, vocês se tornaram  mais que vizinhos. Sinto saudades daquela época. Tudo passa né? Menos as lembranças.

Clara, fico feliz que ainda posso escrever; não enxergo como antes, as mãos tremem, mas consigo ser independente nisto. Meu neto Kiko disse que seria bom eu usar o computador. Mas Deus me livre daquele treco...! Letrinhas miúdas e que de repente fogem... Prefiro assim.
Olha, agora vou ter que parar porque ouço a campainha tocar e estou sozinha.
Escreve-me também. Conte-me das meninas e do Pedro seu neto. Ele já voltou dos Estados Unidos?
Quando voltar a te escrever, quero te contar um segredo que não tive coragem de compartilhar com ninguém. Por isto é segredo, né?

Um beijo e um abraço apertado de horas...

                                     Sara.
*(TEXTO REGISTRADO PORTAL DIREITOS AUTORAIS)