Depois que te enviei aquela carta, passou alguns dias, o Kiko atendeu ao meu
chamado para o exame de compatibilidade da medula e chegou aqui. Nem sei como
agradecer.
Neste dia a Maria Cecília
já estava aqui e todas as meninas com os outros meus netos e todos fomos fazer
o tal exame.
Do lado de fora da sala no laboratório, fiquei muito tempo
pensando nas voltas que o mundo dá e de como por mais que a gente corra das
situações, ela vai fazendo um círculo e voltamos no mesmo ponto. No ponto quer prometemos a nos mesmos nunca
mais voltar.
Sara, tenho duas notícias. Um boa, maravilhosa e outra devastadora
para nós; esta eu nunca quis dividir contigo, mas agora, estou velha demais, amarga
demais e quase todos se vão na minha família, sobrou-me apenas o Pedro e ele
agora com este problema, eu não posso mais adiar.
Bom, a notícia boa é que o Kiko é compatível! De todos nós,
do banco de medula e inclusive de todas as outras primas do Pedro, o Kiko foi o
que deu certo. Eu intuí bem. Quando saiu o resultado, tranquei-me no quarto e
pus-me a chorar desesperadamente.
Choro porque Deus está apontando o seu dedo para mim e
dizendo que das voltas da vida, está mostrando o caminho para eu contar a você
o que aconteceu no passado.
Sara, qualquer pessoa vai me afirmar que o fato do Kiko ser compatível,
não quer dizer nada. Outra pessoa na Austrália poderia ser. Mas foi ele, o Kiko,
seu neto. E para mim já basta. Já guardei
isto comigo há anos demais.
Se depois deste segredo, suas cartas se calarem para mim
Sara, eu vou entender e me recolher à minha pequenez de pessoa desprezível.
Então vamos lá, que Deus me ajude... Sara, por um destes momentos atrozes de
bebida, intimidade e insensatez, eu e o Olívio nos envolvemos em uma única
noite em 1951! Pronto, falei, como dizem os jovens de hoje, ou seja, escrevi. Foi um acidente, isto eu juro
e tanto o Olivio como eu, nos arrependemos demais.
Foi quando eu engravidei da Maria Cecília.
Tenho certeza absoluta disto, porque anos mais tarde contei ao Pedro e fizemos o teste de DNA. Nunca contei ao
Olívio. Acho que seria injusto com todos. Guardamos este segredo, eu e o Pedro
e foi um período muito difícil.
Não quero dizer os detalhes. Você estava fora em um Retiro
Religioso e o Pedro viajando a negócios. O Paulo Roberto teve febre e como o
Olívio estava sozinho e morávamos perto, ele me chamou. Depois que cuidei do
seu Paulo Afonso, fomos para a sala ouvir uma música como sempre fazíamos nós
quatro e o Olívio abriu um vinho. Foi como sempre, como quando estávamos os quatro,
conversando e rindo. Mas em dado momento, estávamos a sós eu e ele, a sala à meia luz e não sei o
aconteceu.
Dispenso os detalhes. Só sei que depois disso, ficamos algum tempo
afastados e eu não conseguia mais te olhar nos olhos. Sentia-me a pior pessoa
do planeta.
Fora o arrependimento por todos e tudo. Sempre fui muito
feliz com o Pedro e não sei o que aconteceu. Mas em seguida fiquei grávida e já
não podia suportar ficar perto de vocês, foi quando mudamos para Curitiba.
Eu acredito em vida após a morte, em premonições, em tudo. E
quando você disse que o Olívio estava aparecendo, achei que seria algo banal,
mas quando soube da doença do Pedro, eu imaginei que ele queria que eu me
abrisse com você. Afinal o Pedro é neto dele.
Sara, depois de tudo que escrevi aqui, não tenho mais forças
para nada. Nem para te pedir perdão, nem para respirar este ar que ainda existe
no mundo.
Termino aqui e contarei os dias e horas até receber uma
carta sua, mesmo que seja para dizer a mim que velha caquética “ furo olho” que
eu sou.
Um beijo,
Clara
P.S. Acredito que a juventude nos prega peças imperdoáveis e esta foi uma delas.