segunda-feira, 29 de agosto de 2016

CLARA, (18a. Carta)




Recebi sua carta, mas como estou em um processo de assimilação de tudo o que aconteceu, fico sozinha zanzando no jardim com os meus pensamentos e não tive nenhum ânimo para te escrever ainda. Acho que a minha ajudante Elvira acha que enlouqueci de vez.


Quero ficar em silêncio Clara. Preciso ficar em silêncio. Só com os meus pensamentos e minhas dores.  

Mas te escrevo, porque
 acima de tudo, preciso deixar estes ressentimentos de velha tola e conversar contigo neste momento muito difícil que você tem passado com o Pedro.

O Kiko me contou que o Pedro já está com o procedimento marcado para o transplante e que ultimamente não está se sentindo muito bem, o que é natural devido ao tratamento.

Estamos rezando para que tudo dê certo, para que ele saia deste momento e fique muito mais forte do que ele sempre foi.

O Kiko também disse, que vai estar de volta para acompanhá-lo no dia do procedimento e ficará mais alguns dias com ele, embora nesta fase as visitas sejam limitadas.

Ele  participou junto com vocês das reuniões  realizadas pelos especialistas de como será todo o processo e disse que é uma fase dura, de muita instabilidade e mal estar para o Pedro, mas que ele já está ciente e muito confiante. O Kiko acredita que a presença de Lisa o está ajudando muito. Fico feliz por isto.

Clara, sei que gostaria de ouvir de mim que tudo está bem quanto ao que me disse. Principalmente em um momento como este. Mas ainda não estou pronta. Sinto-me péssima por isto. E também culpada. Porque o que você está passando é muito maior do que este meu ressentimento juvenil e inapropriado.

Talvez devêssemos conversar frente a frente. Talvez devêssemos bater boca. Talvez devêssemos rolar pelo chão, duas velhas alucinadas resolvendo este dilema de anos. Talvez Clara... talvez... 
 

Com tudo isto, só consigo rezar para que o Pedro fique bem. Para que uma luz de  nova vida brilhe para ele, pois  tem uma estrada enorme pela frente.  Não nós, não nós. Nossa estrada está quase finda.

Continue firme. Continue acreditando. Tudo vai dar certo. Porque Deus quer e será assim.

Fique na paz. Tentarei ficar na minha.

Desejo-te caminhos suaves, brisas de primavera, sem muitas quimeras.

Sara
(TODOS OS DIREITOS RESERVADOS) - PUBLICAÇÃO SEGUNDA OU QUARTA E DOMINGO.

sábado, 27 de agosto de 2016

QUERIDA SOPHIA, (17a. Carta)


Como está, tudo bem? E o nosso “fog” londrino? Muito romântico e tentador?
Depois que cheguei ao Brasil só tenho feito companhia ao Pedro. Estou com muitas saudades.
Sophia lembra o que ele me disse naquela carta e que eu te contei ainda em Londres?

Pois é, depois que cheguei,  o encontrei todo mudado;  não fisicamente, porque eu já esperava isto do tratamento.
Mas mudado no brilho do olhar. O Pedro me olha como se quisesse me atravessar. Sorri mais luminoso e seguro e aperta as minhas mãos durante as sessões de quimio, como se eu fosse o seu porto seguro.
 Mesmo depois quando ele parece morrer, com vômitos, mal estar e tudo que vem junto, eu sinto que só de eu estar ali do lado dele, está fazendo a maior diferença.
Fico feliz por isto, mas, Sophia, nunca esperei ouvir o que ele me disse naquela carta, ou seja, que me amava.

Eu acho que o Pedro está misturando tudo por conta do tratamento e por estar fragilizado. Nunca tivemos nem um clima sequer durante toda a nossa amizade. Não precisa ter ciúmes... Aliás, você é namorada mais cabeça feita que uma pessoa possa ter.
 Sendo sincera contigo, claro que houve um tempo que achei que  até podia rolar alguma coisa, mas ele estava sempre distante e eu sempre com alguém. Aí, nossa amizade fortaleceu muito mais que qualquer outra coisa que poderia a vir a acontecer entre um homem e uma mulher.  Maior que amor, se você quer saber.
Eu o amo, claro, mas como a um irmão. Não há nenhuma possibilidade de haver alguma coisa entre a gente e principalmente porque conheci você. Você que é uma experiência única na minha vida, você que se tornou a luz para mim agora.

Sophia, eu estou com muitas saudades. Saudades dos nossos papos, da nossa convivência, tudo que tenho aprendido  contigo e principalmente, saudades do nosso amor. Mas sei que você entende que o momento é este, de ficar com o meu amigo irmão. Pedro precisa muito de mim e eu preciso muito que ele sobreviva, porque ele também faz parte da minha história.

Sei que ele espera uma resposta minha, me olha com olhos ansiosos e desesperados. Mas como dizer isto a ele agora??? Como acabar com os seus sonhos, planos, em um momento que ele está muito frágil??? Acredito que para algumas pessoas que estão passando por um momento como o dele, ser verdadeiro pode mostrar o quanto as consideramos fortes.
Mas não posso arriscar... O que fazer meu amor? Você que é uma luz para mim, ajude-me! Porque estou no escuro.
 Hoje quando cheguei ao hospital, vi que ele estava escrevendo alguma coisa e que rapidamente colocou sobre o travesseiro.  Fiz que não vi. Mas não quero mais ter segredos com o meu amigo de uma vida. Ouço-o ele tossir e vou até lá ver se precisa de alguma coisa. Devo ficar aqui mais algumas semanas, porque a parte mais difícil está para vir. Ou seja, não sei mais qual é a parte mais difícil deste tratamento.

Com amor,
Lisa.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

OLÁ KIKO, (16a. Carta)


Cara, que saudades dos nossos papos durante o tratamento. Você além de parça,  é agora meu irmão maior! E nem preciso agradecer pelo que fez por mim, porque não há agradecimento possível, nem nesta, nem noutra vida.

Agora que a Lisa chegou e tomou seu lugar aqui ao meu lado, estou muito feliz, mas também com vontade de bater  aqueles nossos altos papos sobre a vida e o futuro.

Cara, eu te falei que me declarei à Lisa por carta. Ela não me respondeu nada. Chegou faz três dias, feliz, sorridente, me abraçou como o velho amigo e...nada!

A única diferença que percebi, foram os olhos dela me vigiando enquanto eu fingia dormir durante a quimio.
Cara, ou eu estraguei tudo ou a Lisa não quer nada comigo!
Ela poderia me dizer qualquer coisa, mas não dizer nada, está me torturando!

Acho que vou tocar no assunto com ela hoje, cara! A presença dela aqui só mostrou o quanto eu a amo, o quanto não posso deixá-la partir. Não, não posso!

Sei que está ai, curtindo com a minha cara e me achando o maior palhaço do planeta e que só a doença para me fazer tão dramático como estou. Vá lá Kiko! Você sabe que a Lisa é especial, c ara. Sempre foi.

Mas durante todo o tempo, ela sempre tinha alguém, um cara, um amigo colorido, sempre uma pessoa a  tiracolo. E eu sempre fui amigo. E só.
Mas com o tempo, a faculdade, o mestrado, a viagem dela, a minha viagem, eu percebi que não tem mais ninguém no mundo além dela que eu goste de discutir o “ motivo das gaivotas fazerem tanto barulho...”, ou porque a maré sobe mais no litoral Sul do que no Norte...
Não posso perdê-la. Mas se tive a coragem de falar por carta, agora que estou careca, magro, quase um moribundo,  acho que Lisa só tem piedade de mim. Sinto-me péssimo.  Mas como estou no fundo do poço, além do fundo como dizem, não tenho nada a perder mesmo.
Estou aqui escrevendo e ouço os passos no corredor. É a Lisa! Eu conheço estes passos.

Eu conheço o perfume dela. Eu conheço tudo da Lisa. Tô escondendo a carta aqui, cara.
Amanhã eu complemento, porque senão sair vivo desta, não sairei também sem  demonstrar a ela,  o porquê de ainda estar vivo.


Pedro.
(TODOS OS DIREITOS RESERVADOS ) publicação seg.quarta/sábado

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

QUERIDA SARA, (15a. Carta)



Começo esta carta com o mesmo trecho que mandou de “Sound of Silence:-

“Olá escuridão, minha velha amiga
Eu vim para conversar com você novamente
Por causa de uma visão que se aproxima suavemente
Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo
E a visão que foi plantada em minha mente
Ainda permanece
Dentro do som do silêncio"

É assim que me sinto hoje e como você sentiu quando te contei.
Lá fora os ventos fustigam as janelas e a chuva cai torrencialmente aqui em Curitiba.
Deve ser o mundo acabando porque eu acabei com uma amizade pura de anos. Desculpe se estou sendo dramática e fazendo-me de vítima. Meu sofrimento está cima do meu pudor.

Ultimamente também fico à meia luz, sentada na poltrona velha, ouvindo apenas o tic-tac do relógio velho, morando na casa velha, onde tudo é velho, inclusive os meus sentimentos.
Nisto tudo, tem um lado que me consola porque sinto que o Pedro está animado com o tratamento, embora este mesmo tratamento leve toda a dignidade da pessoa até ela melhorar completamente. Mas ele é jovem, forte e tudo vai ficar bem.

Sara, quando vou poder caminhar o caminho da nossa amizade novamente?
Quando vou poder caminhar o caminho do seu coração? Do seu perdão?

Eu sou sua amiga. Mas fui a maior traidora daqueles dias lindos de amizade pura que tivemos com nossas famílias.  Você e Olívio era a minha família! Vou morrer e esta culpa vai me acompanhar. A única esperança que tenho é se pudermos um dia sentar frente a frente e conversamos sobre tudo.  Eu não tenho explicações para o que aconteceu, mas quero explicar!

Só sei que somos ligados agora mais que antes. A Maria Cecília me ronda querendo saber o motivo da minha inanição quando não estou com o Pedro. Devo contar a ela? Não sei. Eu a fiz vir aqui para dar a sua porção de amor que um filho precisa quando está doente. Ela mais vai ao shopping do que fica com ele. Mas está aqui.

Lisa vai chegar amanhã. Lembra-se dela? Aquela namorada- amiga do Pedro, a qual ele nunca assumiu nem prá si próprio que ama. Pedro está eufórico e sinto que quando ela chegar, o Kiko vai poder voltar para ficar contigo.

Repito, não quero ser vítima. Mas a velhice me permite implorar. Eu imploro! Dê-me uma chance de revê-la e tentar curar esta ferida que se abriu no meu peito e que sempre doeu desde que a Maria Cecília nasceu.  
Eu pensei em morrer com este segredo. Porque não mudaria quase nada para ninguém. Mas com certeza o meu inconsciente queria te contar. Só não sei se conseguirei viver o com julgamento de todos.  Mas acredito que os percalços desta vida devam ser revelados e relevados se for o caso. 

Se não for o nosso caso, tenha sempre em seu coração que eu sou sua amiga até o infinito.

Para sempre,

Clara

 (TODOS OS DIREITOS RESERVADOS) publicação seg/quarta e domingo.




quarta-feira, 10 de agosto de 2016

QUERIDA LISA, (14a. Carta)



Respondo sua carta já agora do hospital. Aliás, eu dito esta carta para o meu doador e amigo preferido dE infância. O Kiko! Lembra de eu falar nele?
Sara, estou no tratamento necessário antes do início do transplante e a grande notícia foi que o Kiko é compatível!

Foi emocionante! Nunca podíamos imaginar. Esta descoberta veio no momento que eu estava quase querendo desistir, mas que chegou para me ativar o ânimo.  Além dele poder me ajudar, ainda está comigo aqui neste inicio, que consiste do tratamento para viabilizar o transplante.
Assim, estou agora aqui deitado, com um cateter venoso para viabilizar o recebimento de quimioterapia, transfusões, antibióticos, medicamentos e tudo o mais que você nem queira saber.
Tenho sentido muitas náuseas e perda de apetite. Tem dias que certamente acho que vou realmente morrer Lisa.  Mas quando olho para os olhos da vó Clara, agora tão calada, eu sinto que preciso continuar por ela.
Ela tem me feito bastante companhia quando o Kiko tem que sair para alguma coisa.
Conta estórias da família, vemos filmes, comemos pipocas e principalmente ela fala muito na vida que teve com o vô Pedro,a D. Sara e o Sr. Olívio antes de mudarmos aqui para Curitiba.
Sabe, vó Clara teve uma vida muito boa, de grandes noites com os amigos, ida ao teatro, música e amizade. Apenas sinto que quando  atualmente fala na D. Sara, seus olhos se escurecem e ela cala repentinamente. Enfim, estou muito fraco para perguntar. Mas vou perguntar. Ela tem um segredo Lisa.

Diga-me, quando você chega? Já terminou seu trabalho aí? Preciso de você como nunca precisei de ninguém. Por favor, volte logo. Desculpe se estou emotivo demais.
Estou perdendo tudo, cabelos, forças e só não posso perder as pessoas que amo.
E eu amo você Lisa. Pronto, falei, como diz hoje em dia.

Sempre amei. Descobri isto quando você partiu para Londres há cinco anos.  E depois quando fui te visitar aí eu tive certeza. Só não falei para não estragar a nossa amizade mais forte que a rocha...como você sempre disse.
Mas como agora eu não sei o futuro, que pelo menos o presente  seja dito.
Se não puder ter o seu amor, por favor, não me tire a sua amizade.

Um beijo,

Pedro

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

QUERIDA CLARA, (13a. Carta)



Ouço o bater do relógio ao longe e fico na escuridão ouvindo os ecos da sua carta...

Mas o que me prende mesmo, são os ecos daquela música “Sound of Silence” de Simon and Garfunkel  de 1964 que toca ao fundo e que não sei por que alguém colocou justo agora na vitrola. Lembra? Adorávamos muito esta canção. Ou ninguém colocou. Eu apenas a ouço.

E vejo ao fundo, nos idos anos 60, dois casais rindo, ouvindo esta música, fumando e bebendo em um bar qualquer.
Nunca um refrão de uma música foi tão próprio como hoje:-

“Olá escuridão, minha velha amiga
Eu vim para conversar com você novamente
Por causa de uma visão que se aproxima suavemente
Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo
E a visão que foi plantada em minha mente
Ainda permanece
Dentro do som do silêncio"

Quero ficar aqui mesmo. No escuro, doendo estar dor depois de 60 anos do ocorrido.

Eu tenho 84 anos agora Clara, mas a dor é a mesma se tivesse 20. O sentimento de ter perdido um sonho maravilhoso, é o mesmo se tivesse 30, 40, 50 ou 90.

Só tenho agora uma tristeza profunda, uma tristeza inominável que não consigo verbalizar. Porque estas coisas podem acontecer entre um homem e uma mulher a qualquer momento. Principalmente depois de muitos drinks, tequila e piadas de uma noite só, como fazíamos os quatro.

Eu sinto dor, mas não sinto o sentimento de traição. Não sei dizer por quê. Talvez porque me identifique tanto com você Clara, que sei exatamente o que  pode ter acontecido. O Olívio era uns dos homens mais sedutores que conheci. E ele era quase irresistível com o seu charme  emprestado de Gregory Peck.

Um momento leva ao outro.  Quando somos jovens, um uísque  nos leva a todas as portas que não entraríamos sóbrios.
"Não julgues para não seres julgado." Não julgo. Julgo a minha decepção de como os caminhos da vida nos preparam dores inclassificáveis, reencontros implacáveis .

Caminho pela casa escura porque o Kiko ainda não voltou daí. O Kiko é meu neto, mas o Kiko também é seu sobrinho agora. O Pedro é filho de Maria Cecília, é seu neto, mas antes de tudo, sempre foi meu neto também.  Netos e amigos são para a vida toda.  E a nossa cumplicidade sempre foi maior até do que a  nossa amizade.

Não sei Clara se precisaríamos discutir o que aconteceu a esta altura da vida. Talvez você sempre quisesse ter me contado, mais do que ao Olívio, porque nunca disse a ele. Talvez a doença do Pedro fosse o motivo que possibilitou. Talvez tantos os motivos. Tantos...

Só não posso classificar minha dor. Mas só posso classificar o  meu momento. E é de silêncio. 
É de tristeza.


Um beijo e um abraço de horas melhores,

Sara.

 (TODOS OS DIREITOS RESERVADOS)
PUBLICAÇÃO SEGUNDA OU QUARTA E DOMINGO>