quarta-feira, 3 de agosto de 2016

QUERIDA CLARA, (13a. Carta)



Ouço o bater do relógio ao longe e fico na escuridão ouvindo os ecos da sua carta...

Mas o que me prende mesmo, são os ecos daquela música “Sound of Silence” de Simon and Garfunkel  de 1964 que toca ao fundo e que não sei por que alguém colocou justo agora na vitrola. Lembra? Adorávamos muito esta canção. Ou ninguém colocou. Eu apenas a ouço.

E vejo ao fundo, nos idos anos 60, dois casais rindo, ouvindo esta música, fumando e bebendo em um bar qualquer.
Nunca um refrão de uma música foi tão próprio como hoje:-

“Olá escuridão, minha velha amiga
Eu vim para conversar com você novamente
Por causa de uma visão que se aproxima suavemente
Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo
E a visão que foi plantada em minha mente
Ainda permanece
Dentro do som do silêncio"

Quero ficar aqui mesmo. No escuro, doendo estar dor depois de 60 anos do ocorrido.

Eu tenho 84 anos agora Clara, mas a dor é a mesma se tivesse 20. O sentimento de ter perdido um sonho maravilhoso, é o mesmo se tivesse 30, 40, 50 ou 90.

Só tenho agora uma tristeza profunda, uma tristeza inominável que não consigo verbalizar. Porque estas coisas podem acontecer entre um homem e uma mulher a qualquer momento. Principalmente depois de muitos drinks, tequila e piadas de uma noite só, como fazíamos os quatro.

Eu sinto dor, mas não sinto o sentimento de traição. Não sei dizer por quê. Talvez porque me identifique tanto com você Clara, que sei exatamente o que  pode ter acontecido. O Olívio era uns dos homens mais sedutores que conheci. E ele era quase irresistível com o seu charme  emprestado de Gregory Peck.

Um momento leva ao outro.  Quando somos jovens, um uísque  nos leva a todas as portas que não entraríamos sóbrios.
"Não julgues para não seres julgado." Não julgo. Julgo a minha decepção de como os caminhos da vida nos preparam dores inclassificáveis, reencontros implacáveis .

Caminho pela casa escura porque o Kiko ainda não voltou daí. O Kiko é meu neto, mas o Kiko também é seu sobrinho agora. O Pedro é filho de Maria Cecília, é seu neto, mas antes de tudo, sempre foi meu neto também.  Netos e amigos são para a vida toda.  E a nossa cumplicidade sempre foi maior até do que a  nossa amizade.

Não sei Clara se precisaríamos discutir o que aconteceu a esta altura da vida. Talvez você sempre quisesse ter me contado, mais do que ao Olívio, porque nunca disse a ele. Talvez a doença do Pedro fosse o motivo que possibilitou. Talvez tantos os motivos. Tantos...

Só não posso classificar minha dor. Mas só posso classificar o  meu momento. E é de silêncio. 
É de tristeza.


Um beijo e um abraço de horas melhores,

Sara.

 (TODOS OS DIREITOS RESERVADOS)
PUBLICAÇÃO SEGUNDA OU QUARTA E DOMINGO>







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